domingo, 17 de agosto de 2008

Quem não sonha, não sabe o que quer....


COMO FAZER SONHOS


Vem cá.
Vamos tomar café
e fazer sonhos.
Um aquece
e o outro
leva a tristeza embora.


Eu a conheci há muito tempo,
no tempo do eterno,
no tempo de tornar eterno e terno
o necessário para a sobrevivência.

Era, e sempre vai ser,
uma fazedora de alimentos para viver;
transformava
sentimentos doloridos, tristezas, mágoas, melancolias, desilusões
em bem querer a si mesmo
e, assim, conseguir lutar pelo desejado.

- Vó, a senhora está triste?
- Triste, eu? Vem cá, vamos tomar café e fazer sonhos.
Um aquece
e o outro leva a tristeza embora.

Quem não sonha não sabe o que quer.

Aí ela me contava os seus sonhos,
vividos, não vividos, por viver.
Assim me ensinava a sonhar
e eu não estava mais triste.

Então, e só então, íamos ver a sorte.
Na sorte não existiam sonhos,
existiam possibilidades,
impossibilidades,
existia dor, morte, sorte, paixões, traições,
namorados, quereres;
decepções, intrigas, cuidados,
amores desfeitos e refeitos...
Já não fazia mal ter tudo isso,
as partes haviam se juntado,
o que era veneno tinha virado alimento.

E com tudo isso lá ia eu,
preenchida, vívida,
me lembrando das histórias de possibilidades
ali vividas,
acreditando...

As histórias eram muitas,
uma vez me ensinou a caçar o medo.


- Certa feita, a minha filha Adijalva fugiu,
ela tinha que enfrentar o amor
e teve medo.
Então juntei as outras filhas e fomos atrás dela,
pelo sertão do Mato Grosso,
a cavalo,
dias sem fim.
A companhia era o amor que tinha me fugido
e a vontade de encontrá-lo;
o medo de perdê-lo afastava os outros medos:
cobra, onça, sertão, mata, solidão, monstros,
ausência de sonhos, desilusão,
medo de perder e de me perder.

Foram dias andando atrás, sem parar,
desmontamos
e montamos acampamento,
uma fogueira para aquecer,
para afugentar medos de fora.
Mas ninguém se esquentou bastante
e apareceu uma onça.
Não tive dúvida:
- Ou eu ou a onça.
Matei e assei.
Estava com fome, não com medo.
(Aqui vinha
a gargalhada de quem venceu.)

E depois,
se você tem medo de onça,
você precisa ir atrás,
acabar com ela, se não ela acaba com você;
comer um pedaço
e provar que você acaba com ela
para nunca mais ter medo dela.

E com isso eu aprendi que
o medo é encantado e poderoso
por isso ele assusta.
Este foi o meu alimento.

Provar uma vez só não basta,
é preciso saber mais.


Um dia alguém lhe disse que
estava cheia de suas histórias
e que ela se modificasse,
parasse de ser o que era e
se transformasse numa coisa só.

Então ela ficou muito triste,
ser uma coisa só era não-viver,
era ficar sem os seus alimentos.

Assim foi procurar um veneno
que tinha reservado para esta situação,
para o dia em que não pudesse mais se alimentar,
porque ficar viva, sem viver
o que ela era,
não bastava para essa mulher.

E começou a remexer nos seus guardados
nas malas antigas,
em seu baú,
buscava o seu veneno
desesperadamente,
no seu olhar ardia,
jamais vista,
a dor que não podia suportar:
não poder ser o que era.

Quem passou a vida
procurando alimentos para venenos,
achou um alimento antigo,
que tinha cultivado a vida toda.
Um alimento especial,
criado por ela mesma, para ela mesma.
De dentro de uma mala escura, empoeirada,
tirou um vidro nada empoeirado.
Vidro pequeno,
dentro reluzia um pó,
negro-brilhante, muito vivo.

- Achei! Ah! Agora sim!
Havia me esquecido,
fazia tempo que não usava.

Venha ver, isto você precisa aprender.
Você não vai acreditar no que vai ver
mas vai ver e acreditar.
Pegue essa lata embaixo da cama
(a cama de ler sorte).
A lata, velha, antiga, gasta
e cheia de pedras,
as pedras escuras não pareciam ter vida.
Olhe bem para elas, veja como estão,
vou dar alimento para elas.
É necessário alimentar as pedras,
senão elas morrem
e você morre junto.

Então, como se soubesse
que elas estavam há muito sem alimento,
com expressão de quem sabe muito bem o que é
isso.
despejou o pó negro nas pedras
(só um pouco, para sempre ter mais)
e elas se mexeram.
C r i a r a m v i d a
cresceram
e, depois de crescidas,
se posicionaram de outra forma
e pareciam em paz.

Um dia eu tive um sonho,
eu lhe pedia um pouco do seu pó
pois agora sabia o que queria
mas não sabia
como conseguir o que queria.
Ela me respondeu que
eu poderia conseguir tudo o que quisesse
mas o pó só eu, eu mesma, teria que conseguir.
Então lhe pedi a possibilidade, a lata,
e saí pela montanha, contente,
acreditando,
à procura do meu pó.

Um dia eu soube que tinha
o pó, negro-brilhante,
embora tivesse receio de usar e acabar.
Sem lhe falar,
ela soube que eu tinha conseguido.
Aí eu quis o que ela sempre quis,
ler a sorte, aprender.
Então me disse que não precisava mais me ensinar:
- Você já sabe.
Quando quiser, comece.

Assim, resolveu descansar
e foi ter com o seu pó.

Fui procurar a lata
porque o pó, o dela, levou consigo.
Queria cuidar da lata de pedras,
mas esta também era sua,
as pedras haviam morrido,
a vida delas foi junto,
a lata se enferrujara,
estava desmanchando.

Fiquei muito triste,
querendo que ela fosse eterna,
então me lembrei:
- Triste, eu?
Venha tomar café
e fazer sonhos.

Vó se dera o nome de Iracema,
no batismo era Agda, Águida.


Fábia Rímoli.

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